Uma Breve (espero) Autobiografia do Autor
Você já viu algo mais auto indulgente do que uma autobiografia? Algo mais narcisista, laudatório ou depreciativo? Pois é... eu acho isso curioso. Mas, verdade seja dita, isso também é necessário. Quando lancei o Haram pela Chiado Editora optei por ser sucinto, quase telegráfico na minha apresentação. Afinal, acho que o livro deve falar por si mesmo. E, francamente, pouco vejo de interessante em saber quem escreve. Já vejo você, eventual leitor deste texto, balançando a cabeça de dizendo "que cara chato; pior que ele não entende nada de como as pessoas funcionam". Você tem razão. Nas duas coisas. Uma boa parte das críticas que recebi sobre o livro foi exatamente esta: falta de informações do autor. Me pareceu estranho, realmente. Mas, enfim... se é o que as pessoas querem saber (mais do que o livro em si, o que não deixa de ser uma decepção para mim) vamos lá. Vivendo e aprendendo.
Falando em viver, comecei a viver em Rosário do Sul, perto do final do ano de 1968. Falo em começar a viver de várias formas. Nasci ali, no Hospital Nossa Senhora Auxiliadora, de cesárea, depois de uma gravidez complicada. Não lembro de nada disso, afinal eu era um bebê na época. Por sinal muito feio, segundo a minha mãe. Começamos bem... mas sem reclamações. Talvez mais interessante do que saber onde eu nasci seja saber como eu cheguei a nascer lá. A vida dos meus pais dava um romance que eu, como filho, não vou escrever. Em resumo, meu pai, ex-frei capuchinho, com dispensa papal, casou com minha mãe, uma luterana convertida a católica. Conheceram-se entre notas musicais, literalmente. Ele foi professor de canto orfeônico dela e os detalhes dessa história eu, como filho, desconheço. Ainda bem. Pode ser um tema interessante para um romance, mas escrever sobre sua mãe e seu pai como pessoas é estranho. Afinal são tua mãe e teu pai, oras.
Mas, enfim, com a situação pouco comum na época (e hoje tambem, pensando bem) os dois tiveram a recomendação de morar longe de onde fossem conhecidos. Daí Rosário do Sul, no meio dos anos 60. Eles me falaram a vida toda de um Rosário que eu já não conheci. Sem ponte cruzando o rio Santa Maria. Sem legumes nas refeições do dia a dia. Como bom descendente de italianos meu pai sempre teve uma horta em casa. Nas casas de alguns dos meus amigos também haviam hortas. Mas, nessas, só via plantados temperos. Ervas para chá. Eram diferentes. Cresci em uma casa com pátio, galinheiro, árvores onde podia subir. Nunca fui muito ágil, entretanto. Isso ficava por conta da minha irmã, Cláudia, nascida perto do meio de 1970. Tudo que eu tinha de calmo ela tinha de agitada. Era um dínamo de energia, subia pelas paredes (literalmente) e, segundo minha mãe, passou "do deitado para o correndo de um dia para outro, sem estágios intermediários". Também não lembro muito disso. Éramos tão diferentes quando crianças que, a rigor, vivíamos existências paralelas. Muitos anos depois isso mudou. Muito. Tenho, hoje, o maior carinho e respeito por essa pessoa que minha irma se tornou, por méritos próprios. Ainda bem que o tempo muda e nos ensina que irmãos são grandes presentes. Que muitas vezes começam pequenos. Com um pulo no tempo, só para não deixar as pontas soltas, tenho uma outra irmã, a Ana Paula, nascido em 1982, quando já estávamos saindo de Rosário. Um presentinho mesmo. Por conta da grande diferença de idade éramos muito apegados. Meu controle remoto. Fazia tudo que eu mandava. Muito amor numa pessoinha só.
Mas, como disse, este foi um pulo no tempo. Cresci em Rosário. Isso parece uma declaração neutra, mas na verdade não é. Em sonhos ainda percorro a cidade da minha infância, a casa onde cresci, os cantos onde me escondia. Sempre fui um tanto timido e retraído, embora nem sempre pareça. Sei fingir bem. Aprendi desde criança. Ainda continuo, em boa parte, sendo aquele gurizinho branquelo que cresceu em Rosário. Numa Rosário que, embora não tenha mudado tanto, não é mais a cidade que eu conheci.
Tive ótimos amigos em Rosário. Alguns eu encontro hoje, décadas depois, e continuamos as conversas que tínhamos na infância. Rimos das mesmas coisas. Nos admiramos dos mesmos fatos. Sentimos falta de tanta gente. Mas isso passa. Como o rio. Rosário tem, nas minhas lembranças, o Santa Maria no fundo. Correndo da direita para a esquerda, do Quartel para a Ponte. A areia dessa praia é inigualavelmente fina. Quem não a conheceu, especialmente num dia de ventania, não faz ideia do que seja. Dói, açoita e machuca. Mas é impressionante. E a água do rio? Tem um cheiro inesquecível. Um gosto doce. Gosto de infância, eu diria. Talvez alguns contraponham... falem do plâncton, do esgoto, das terras que são arrastadas para o rio. Provavelmente é um pouco de cada. Mas eu conheci um Santa Maria que dava peixe, lembro da minha infância com peixeiros vendendo peixes pela rua. Dourados, grumatãs, eventualmente um surubim. Sério, isso existia lá. Pescavam abaixo da ponte. Outro mundo, outros tempos.
Rosário foi a minha cidade de alfabetização também. Das primeiras experiências com a leitura e a escrita. Na verdade não recordo de um momento da minha vida em que não tivesse, pelo menos, um livro ao alcance dos olhos. Filhos de professores padecem dessa bênção. Eu já gostava de ler antes de saber ler. Meu pai ou minha mãe sempre liam para nós. Me recordo de entrar na biblioteca (sim, tínhamos uma peça na casa que chamávamos de biblioteca, mesmo que isso pareça um tanto esnobe) e fitar as estantes longamente, acariciando com os olhos as lombadas dos livros, prometendo a mim mesmo que um dia leria todos. Comecei bem: assim que me alfabetizei, li os 12 volumes da Enciclopédia Conhecer. Sempre gostei de fatos curiosos, de história. Deliciei-me ali e ninguém nunca mais me segurou. Logo deixei de ter livros "inadequados para a minha idade" porque não havia como refrear a curiosidade. Sempre li. De tudo. O escrever começou mais ou menos junto com isso. Lembro que escrevia histórias que, no papel, não eram tão boas quanto na minha cabeça. Basicamente eu copiava histórias que lia, filmes que via, coisas que imaginava. Mas o resultado era ruim. Felizmente estes textos se perderam no tempo, devem ter sido queimados em alguma churrasqueira, passada alguma mudança. Ainda bem. Muito do que aprendi, lendo e escrevendo, foi por conta própria, à margem do que fazia na escola.
Escola? Fui alfabetizado no Padre Ângelo Bartelli, onde minha mãe era diretora (eu mereço...). Antes frequentava "a Escolinha", que descobri, muitos anos depois, se chamar Leôncio José do Nascimento. A partir da quarta série (na época era o Primeiro Grau, dividido em oito séries) fui para a Escola Nossa Senhora do Horto, onde fiquei até a Oitava Série, a útlima. Falar assim da escola é tão estranho... por anos ela é o centro de nossas vidas, nosso compromisso, nosso interesse principal. O cenário dos primeiros amores, o campo de batalha das primeiras guerras. As disputas. Os sucessos, vários fracassos. Mas, na verdade, é isso mesmo. Como a família. A escola nos prepara (pelo menos no tempo em que eu a frequentei era assim) para a vida. Mas não vive a vida por nós. Nem é a vida. Estrutura. Sustenta. Mas não é tudo. Nem de longe.
Falando em longe, como todo filho de professores, soube, desde sempre, que teria que fazer a minha vida. Dinheiro não tínhamos. Posses muito menos. Então, não havia nada em família para me sustentar. Empreendedorismo não é o meu forte. Logo, sabia que o caminho seria estudar. Aparentemente toda a família pensava isso. Para que eu fizesse um Segundo Grau (hoje acho que se chama Ensino Médio, talvez porque meio que ensine...) houve uma mudança radical. Todo mundo de volta para Ijuí, onde meus pais se conheceram e se apaixonaram. Parece que na década de oitenta um ex frei casado não era mais motivo para escândalo. Então, começamos uma nova etapa. Escola diferente, vida diferente. MUITO diferente. Exigências maiores, um grande susto com notas ruins no primeiro bimestre. Desesperado, como último recurso, passei a fazer algo que nunca tinha feito na vida: comecei a estudar. Nunca tinha sentido necessidade de sentar e estudar, regradamente, com horário. Pois precisei fazer. E, surpreso, descobri que dava resultado. As notas sobem quando a gente se dedica.
Outros projetos corriam paralelos, nessa época. Com 15 anos o mundo é nosso e sabemos todas as respostas. Nenhuma dúvida. Corremos vendados para a beira do precipício achando que sabemos o que fazemos. Na verdade sabemos. Ou sabíamos. Só não ligávamos muito. Por isso alguns caem e se machucam. Outros ficam defiinitivamente aleijados. Eu tive sorte. Ou mérito... essa foi a fase de ser amparado, empurrado, abraçado e acolhido por um grupo de teatro. Em 1983, durante meu Primeiro ano do Segundo Grau, fiz parte da turma que fundou o grupo Perdidos no Palco. Fazer teatro foi definitivo na minha vida. O palco é um ambiente mágico, produzir alguma coisa boa é altamente realizador. Quem teve a experiência sabe do que estou falando. Quem não teve talvez possa imaginar. Enfim, o Perdidos me acompanhou - ou vice-versa- durante os três anos do Segundo Grau. Aprendi mais ali sobre mim do que em qualquer outro momento da vida. Escrevi muito, nessa época. Em 1985 escrevi os textos que acabaram dando origem à peça quem montamos naquele ano. Fiz assistência de direção também. Minha timidez não desapareceu, mas ficou sob controle. Domada. Algo muito útil para o futuro. O teatro, na época, era visto como algo desimportante. Marginal. Secundário. O valorizado era o esporte. Isso nos incomodava tanto quanto nos orgulhava. Éramos diferentes. Ah, fui arremessador de peso. Ruim, mas fui. Essa é a única nota que vocês encontrarão na minha biografia no que concerne a esportes competitivos.
Final de 1985, vestibular. Para Medicina. Na época, uma seleção em duas etapas. Uma objetiva, outra dissertativa. Passei. Feliz, vida nova. Universitário aos 17, dos mais novos da turma, sem dúvida o que tinha o cabelo mais comprido. O que mais ouvia rock. Mas, como me disse um professor, surpreso "aquele cabeludo lá do canto estudava e sabia tudo". Divertido. Escrevi muito nos primeiros anos de faculdade. Muita poesia (horrivelmente ruins, tenho pena até hoje dos colegas de apartamento que tinham que ler aquilo) e alguns contos. Quase livros. Quase tudo esquecido em algum canto. Pouca coisa aproveitável, válida como exercício e só. Falando em exercício, comecei natação ali pelo quarto ano do curso. Retomei, na verdade aprendi a nadar quando era criança, no Santa Maria. Conheci uma monitora, casei. Me formei um anos depois. Seguiram-se 364 dias de Exército Brasileiro. Regimento Mallet. Ou, para quem gosta de história, o antigo Primeiro Corpo Provisório de Artilharia A Cavalo, o Grupo de Artilharia mais antigo do Brasil, hoje correspondendo ao Terceiro Grupo de Artilharia de Campanha Auto-Propulsada. Por que 364 dias? Porque o Ministério do Exército não é bobo: se fossem 365 eu teria direito a férias. Bom, depois do meu tempo de serviço obrigatório, residência em Medicina Interna, depois residência em Gastroenterologia. Um convite para ficar como professor convidado, depois a aprovação num concurso de Professor Substituto. Outro concurso, desta vez para Professor Efetivo. Depois de um período de espera, Professor da Universidade Federal de Santa Maria desde junho de 1998. Fora isso algumas incursões aventureiras: tive consultório, fui plantonista de Unidade de Terapia Intensiva. Eventualmente larguei tudo, à exceção da universidade, onde trabalho até hoje, agora em regime de dedicação exclusiva.
E os escritos? Sempre me acompanharam. Em diferentes fases da vida. Contos, textos, e, aproximadamente a partir de 2001, comecei a escrever a história do Haram (mais detalhes em Haram (O Personagem) e Sua Saga). Nasceu quase junto com o Augusto, meu filho. Lembro, inclusive, de escrever todo o capítulo 1 do Livro 2 - Terra Imshi, com ele dormindo no meu colo. Passei os braços por baixo da criança, para alcançar o teclado e a história foi para o papel. Ou tela, no caso.
Depois disso veio um mestrado, um divórcio, um doutorado, algumas outras coisas. A vida continua, enfim. E escrever é parte da minha vida. Gosto, preciso, me permito. Às vezes como uma catarse. Às vezes como um presente. Para mim ou para outra pessoa. Às vezes porque é bom. Só isso.
Em linhas gerais, taí minha biografia. Se você chegou ao final dessa leitura sem bocejar, parabéns. A história ainda está sendo escrita, obviamente. E espero que ainda se escreva por um bom tempo. Minha experiência na UTI me fez pensar muito em vida e morte. Gosto muito da primeira, estou pronto para a segunda. Sem pressa, se alguém quiser o meu lugar na fila, cedo com a maior facilidade. Mas, até que chegue a minha vez, vamos indo. Vivendo. Respirando. Escrevendo.